sábado, 24 de abril de 2010

evil servílio

incomodado pelo calor e pelas imperfeições da roupa que buscava emular os grandes daredevils de outrora - e como ficam horríveis as imitações limitadas pela escassez de fundos e senso estético -, buscava concentração. olhava pra frente: uma centena de metros de terra batida, uma rampa de madeira que inspirava pouquíssima confiança, três carros antigos e quase destruídos que em breve seriam postos em chamas, e uma outra rampa similar, mas não igual - tinha cerca de um metro a menos que a outra.

recebeu da organização do evento um time slot privilegiado , de forma que o público passava dos três dígitos. crianças ansiosas, adolescentes barulhentos e pais entediados, todos mais interessados na nada desprezível chance de tragédia do que nos feitos daquele cidadão com a indumentária ridícula em couro branco falso. na extremidade oposta do circuito, localizou as três faces familiares que esperava encontrar por ali.

com a testa franzida e os olhos puxados pelo medo, sua esposa observava os preparativos com os braços cruzados e a perna direita em constante movimento, entregando o nervosismo - e isso porque desconhecia sua influência na insistência do marido em seguir a carreira, que paga tão pouco como tantas outras em que o risco é bem inferior. vinte e sete anos é pouca idade, não se espera maiores quedas de rendimento, e é difícil para um homem lidar com um inexplicável decréscimo nas suas capacidades eréteis. cada um resolve isso do jeito que acha melhor, e não sou eu quem vou dizer que ele está errado. alguns compram carros maiores do que precisam, outros desafiam a morte.

ao lado, uma lenda circense brasileira: o sr. servílio honorato, pioneiro do globo da morte tupiniquim, que introduziu técnicas antes tidas como impossíveis e passou mais horas dentro da imensa jaula circular metálica do que qualquer outro em seus dias de glória. questionado sobre suas razões, sempre oferecia a mesma resposta: "só sei fazer isso, e se tiver que morrer no globo para que o júnior tenha mais chances que eu, é um ótimo motivo". homem forte, trabalhador e honrado, mas o plano falhou: seu filho não teve chance alguma, e agora arrisca a vida semanalmente, como o pai arriscou por tanto tempo. hoje seu servílio acompanha todos os saltos do rebento.

completando a escadinha, seu filho, que escapou da alcunha de servílio, mas recebeu outra de peso equivalente: jeovânio. mantinha a mesma expressão facial retesada da mãe, mas por motivo diferente - um problema na mandíbula que causava um violento prognatismo e eventuais dores muito fortes. a cirurgia que poderia corrigir o defeito estava marcada para uma data ainda distante, e os momentos de dor eram cada vez mais frequentes. sabia que o filho adorava as apresentações do pai e imaginava que bicos como pedreiro ou entregador de bebidas não trariam o mesmo alento para o moleque. uma razão a mais.

tinha curiosidade sobre a morte, servílio júnior. desde a adolescência, pensava se as forças supremas nos fornecem algum tipo de sinal quando chega nosso momento - um gosto na boca, uma sensação pelo corpo, a visão de um animal, ou uma pessoa, ou uma luz, ou qualquer outra coisa. sempre antes de seu salto, em seu momento de concentração, buscava algum desses indícios, tanto no ambiente quanto em si próprio, que pudessem mostrar que algo correria fora do esperado. nesse dia em particular, observou o vôo circular de uma ave negra, bem longe. coisa fora do padrão na região, que conhecia havia tanto tempo.

sorriu baixinho, pensando que deuses não poderiam ser tão óbvios, e fez soar o motor da motocicleta pela primeira vez.

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