"maldito rum. toda vez que eu bebo rum acontece alguma coisa". dúzias de vezes esse pensamento deve ter passado pela cabeça de samuel enquanto ele estava prostrado na poltrona velha do quarto, olhando para o amigo que ainda dormia, para o programa de entrevistas vespertino na tela da televisão 14 polegadas, para as rachaduras nas paredes amareladas, para a bolsa de soro quase vazia. prometia quase que mensalmente a interrupção do consumo da bebida. devia parar, mesmo.
festa na casa do cunhado. ambiente ébrio, ânimos exaltados, bom senso cada vez mais raro. todo mundo conversando sobre um filme lá (me fugiu o nome), citando frases, reconstituindo cenas, quando do nada samuel levantou cambaleante, copo de cuba libre na mão esquerda, a faca que estava sendo usada para partir os limões das caipirinhas na direita. em silêncio, olhos fixados nos de augusto, seu cunhado, percorreu lentamente a distância que separava os dois com uma expressão tão apavorante que interrompeu a conversa de quase todos os presentes, que agora riam em antecipação da brincadeira que ocorreria, seja lá qual fosse. aproximando-se, deixou o vasilhame numa mesa próxima, agarrou com violência excessiva - bêbados não são muito bons em medir a força dos seus movimentos - a garganta de augusto e o colocou contra a parede. em seguida, tentou imitar uma passagem em que o personagem intimida seu antagonista ao cravar uma faca no espaço entre as suas pernas abertas. isso sem observar o golpe.
infelizmente, o cálculo de samuel não foi dos melhores.
agora imagine você o que é uma faca serrilhada daquelas de passar manteiga em pão perfurando o seu saco escrotal, atingindo um testículo e mais um monte de coisas cujos nomes e serventias são completamente desconhecidos pra mim. augusto dobrado no chão, calça empapando de sangue, gritos horrendos de dor, samuel com os braços abertos e o rosto imobilizado por um misto de choque, pavor e alguma consciência da dimensão da merda feita. a rapaziada imediatamente fica careta com o susto, alguém liga pra ambulância e chegamos ao hospital. cirurgia delicada, não vou ficar aqui relatando sobre o que não entendo direito, mas o resumo da conversa é esse: foi difícil, mas tudo correu bem. o rapaz vai ficar ok, mas pode riscar a procriação como objetivo de vida.
pra mim, seria um prêmio de consolação - tudo bem, foi um revés, doeu bastante, cirurgia e tal, mas pelo menos não teria mais que me preocupar com a possibilidade de gerar mais um moleque chorão, catarrento e fresco atrapalhando a minha vida e a de todo mundo ao redor. não sei qual era a posição do pobre contemplado com a vasectomia caseira sobre o assunto. sei, por outro lado, que a consternação de samuel não era por causa do sofrimento do parente - até gostava dele, mas o negócio ali era outro. apresentou a irmã - moça fornida, diga-se de passagem - para o amigo rico, se deram bem, se amigaram. um preservativo furado aqui - todo mundo sabe que jontex é meio palha mesmo, ninguém mandou usar -, um lapso na rotina de uso de anti-concepcionais ali. quem sabe dava certo, valia a tentativa. a moça concordou, porque era dessas. no fim das contas, repartiriam os ganhos. diz ele que confiava na menina, naquela família nunca teve traíragem, mas não sei não, viu?
de qualquer forma, esse arranjo estava morto. com mais sete meses de licença não-remunerada na repartição pela frente e um consumo mal planejado das economias no banco, o panorama não era dos melhores. sentado no móvel poeirento e rasgado, já tentava maquinar alguma idéia para obter um dinheiro respeitável. desconsideraria os mínimos limites auto-impostos; o importante era não voltar para aquele emprego infernal. não vou dizer que não entendo.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário