agachado, levantava o meião direito, cuja brancura agora estava maculada pelas seis marcas amarronzadas deixadas pela chuteira de benitez, o zagueiro argentino que cometera a penalidade. expulso de campo pelo acúmulo de cartões amarelos, deixou a cancha berrando palavrões contra os adversários, juízes, torcida, todo um país e uma série de entidades pagãs que para ele nunca fizeram sentido algum.
colocou a bola na marca de cal com a calma adquirida em doze anos de profissionalismo cigano. passou por toda parte e conhecia tudo - sucesso, fracasso, dor, solidão, adoração, fugas de torcedores transtornados e querendo matar, recompensas nababescas por triunfos em países eslavos que destroçavam seu nome com caracteres cirílicos nas costas da camiseta. hoje fornecia seu talento a uma dessas odiosas equipes formadas por empresários, sem torcida, sem base, sem história e sem razão de existir que não seja a produção de cifrões na conta corrente de quatro ou cinco pústulas. atuava com uma terrível camisa alaranjada, em um estádio minúsculo no interior paulista, para cerca de cento e quarenta vadios que se dispunham a acompanhar um embate de tamanha insignificância numa tarde de quarta-feira. a maior parte da torcida era de adeptos do adversário.
gostava de futebol, respeitava o jogo e considerava toda aquela situação uma maldita vergonha. era um jogo eliminatório, crucial para as intenções das duas agremiações de acesso à terceira divisão estadual, e nas suas mãos tinha a quase certa eliminação de uma esquadra com algum valor, uma torcida apaixonada, um distintivo com algum peso, apesar da decadência trazida pelos dias do clube-empresa, do marketing esportivo, das arquibancadas cobertas por cadeiras nos grandes estádios. isso em nome do seu arremedo de time, um agrupamento de jovens retirados dos mais diversos e perdidos rincões do país, jogando com chuteiras fosforecentes, cabelos em cortes moicanos, sonhando com transferências para a europa ocidental, quando a macedônia ou o vietnã são possibilidades mais concretas. foi contratado para fornecer experiência para o scratch e não via a hora de abandonar aqueles infelizes.
tinha em sua frente um negrão que parecia tampar metade da meta com seus 1,92m e gigantescos braços abertos. apesar do calor que beirava os quarenta graus, atuava de calças compridas e mangas longas - sempre imaginou que essa indumentária passava uma imagem mais forte, causava mais impacto nos atacantes. por sobre os ombros largos, o goleiro via seus melhores dias, quanto coletava cheques em equipes de média expressão no cenário brasileiro; um desses caras que ficam por cinco, sete, dez anos no elenco do coritiba, ou do figueirense, e se eternizam na memória do torcedor mais atencioso, embora sejam quase completamente desconhecidos por outras paragens. o negrão sabia que tinha em sua frente um adversário valoroso, conhecido pela tranquilidade nos momentos de pressão e pela precisão nos arremates. sabia que as pilhas aa e os copos de urina arremessados pelos torcedores e que se aproximavam perigosamente do atacante causariam pouco - se algum - efeito. de qualquer forma, pularia para a esquerda, como quase sempre.
prestes a assoprar seu instrumento de trabalho, o árbitro supervisionava tudo, exigindo o posicionamento do guarda-redes na linha do gol e que os atletas dos dois times não adentrassem a grande área antes da hora certa. alertou o cobrador: "aqui não é a vila belmiro. paradinha eu mando voltar". considerava lamentável o recurso injusto e covarde empregado por tantos outros atacantes de chuteiras fosforecentes e cabelos em cortes moicanos por aí. apesar das novas tendências que livraram os juízes da obrigação de sempre trajar negro, não comprava uniforme de nenhuma outra cor - "preto é uma cor que comanda respeito", dizia. estava aliviado pela obviedade do pênalti de benitez; não fosse algo tão claro, teria que inventar algo em favor dos endinheirados de laranja, posto que já estava na folha de pagamento. aluguel da casa, filha na faculdade, sua loja indo cada vez pior - vai fazer o que? não era a primeira vez, não seria a última.
fez silvar seu apito, autorizando a cobrança da penalidade máxima. o atacante, macaco velho, bateu como se deve sempre bater um tiro desses: forte, à meia altura, no centro do gol. o negrão bandeou para a esquerda e desabou na terra seca e batida que substituía a grama nas proximidades das traves. seus companheiros correram na direção do artilheiro para comemorar o tento, mais em respeito às convenções do esporte do que por animação, e o encontraram ainda parado, olhando para o arqueiro deitado, para as arquibancadas vazias, para o árbitro corrupto e para o gramado que mais parecia um potreiro.
esperou o arrefecimento do júbilo falso dos colegas e, cabisbaixo, retornou para o seu campo para o reinício da contenda.
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