acordava mais cedo para ter tempo de conferir mais atenção ao bigode, depois do banho. vestia-se com pressa: colocava um dos dois ternos, ambos velhos e rotos, uma das diversas camisas brancas, todas igualmente puídas e gastas, e o par de sapatos velhos e empoeirados, de amarrar. cumpridas as obrigações de vestuário, concentrava-se no grosso feixe de pelos que adornava seu rosto, penteando cuidadosamente com uma escova de dentes e aplicando o produto que mantinha sua cor natural - não teria esse cuidado com os cabelos, se ainda existissem. fios rebeldes ou compridos demais eram aparados por uma tesourinha. usava aquele bigode havia 35 anos, e ele sempre foi impecável.
assim, vestido como um molambo mas ostentando aquele respeitável adorno facial, ganhava a rua, caminhando lentamente, portando um imenso guarda-chuva. períodos longos de estiagem eram comuns na cidade, e entre abril e outubro não caía uma gota sequer, mas pouquíssima gente já havia visto aquele senhor fora de casa sem o artefato. desconhecidos poderiam acreditar que o objeto serviria para amparar a caminhada de um idoso de saúde debilitada, mas os moradores do bairro sabiam para que o aparato seria usado: golpes violentos nos tornozelos de transeuntes distraídos, "tudo puto e vagabundo", segundo o agressor.
assim passava suas manhãs, desde que os filhos venderam a padaria e impuseram sua aposentadoria. nunca havia sido confrontado por ninguém - era visto como um velho louco, desses que perambulam pelas ruas de todos os bairros do mundo; uma figura folclórica que incomodava, mas divertia, e que não viveria por muito tempo, de qualquer forma. o senhor, por sua vez, não tinha dúvidas: ninguém se atrevia a tirar satisfações por causa do bigode, prova irrefutável de que ali havia um homem de verdade. chateava-se com esse mundo moderno, sem bigodes e gente digna, cheio de putos e vagabundos. quem sabe aprenderiam na porrada.
voltava pra casa logo antes do almoço para esperar a marmita que recebia diariamente, cortesia da família. à tarde debruçava-se na janela para observar as crianças brincando na rua, torcendo para que não cresçam frouxos e desprovidos de caráter como os pais, e tomado por vergonha silenciosa pelo volume que se desenvolvia e marcava as finas calças do pijama.
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Um comentário:
haah Muito bom! Td q envolve bigode e velho resmungão acaba sendo engraçado...
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