três meses depois do seu 57o aniversário, éverson resolveu abandonar o emprego e se dedicar a um hábito incomum: passava os dias empurrando uma gigantesca bola de papelão pelas ruas. era um objeto imperfeito, cheio de arestas, mas que se assemelhava suficientemente a uma esfera para rolar quando recebia o estímulo necessário.
no começo, éverson respeitava o horário que cumpria na repartição pública onde passou 24 anos de sua vida profissional - saía às nove da manhã e voltava às seis e meia da noite. entretanto, depois de um tempo, passou a não ter mais vontade de voltar para casa e às vezes passava vários dias nas ruas, totalmente sujo e maltrapilho, parando apenas para descansar por breves momentos. enojada pela irresponsabilidade desse ato sem sentido, sua familia o expulsou do lar. agora nem tinha mais para onde voltar, estava dormindo ao relento, mas isso não interessava. a única tarefa importante era empurrar a bola de papelão.
não demorou muito para que aquilo chamasse atenção de curiosos e de interesseiros. por alguns períodos (semanas, até meses), a bola de papelão virou moda. espertalhões tentaram utilizar o método para vender seminários de auto-ajuda, receitas para emagrecer, livros sobre auto-descobrimento. empresas procuraram éverson com milhões em maletas, oferecendo patrocínios, requisitando sua participação em comerciais. "vida simples" é um conceito que vende, segundo as últimas pesquisas.
éverson ignorou todas as propostas. reduziu seu contato humano ao mínimo possível. vasculhava lixeiras atrás de alimentos, às vezes aceitava doações. não respondia às perguntas das pessoas sinceramente curiosas sobre as razões de um comportamento tão incomum - apenas ria timidamente, fazia um saudação breve com a cabeça e continuava seu caminho.
quase oito anos depois, quando faleceu, já fazia parte da mitologia da cidade como um dos milhares de loucos que andam pelas suas ruas. os cidadãos passavam por ele e faziam expressões de escárnio, reprovação ou simplesmente pena, pensando o que levaria uma pessoa a trocar um ordenado polpudo, um emprego estável, uma família tradicional e uma casa confortável por uma vida daquelas. ponderavam se era loucura, desilusão, se foi chutado pela mulher como os cachorros sarnentos com os quais dividia as sarjetas.
samuel, a pessoa que tratou seu cadáver, certamente trabalhava com a primeira hipótese, se perguntando como alguém tão desgraçado poderia morrer com um sorriso de satisfação estampado no rosto. estava na casa dos quarenta, odiava o emprego e só via algum prazer na vida quando espancava a esposa.
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