queratina

"oi. não se assuste, isso acontece com todo mundo."

essas foram as primeiras palavras que ouviu do indicador de sua mão direita. a partir desse dia, esse dedo interferiria em todos os aspectos da sua vida.

era uma pessoa calada, não gostava de socializar. incomodava-se bastante com o falatório do seu apêndice, mas descobriu uma compensação: o momento do corte das unhas. iniciava pela mão esquerda; depois aparava lentamente a lâmina dos outros cinco, primeiro o mínimo, depois o anelar, depois o médio. saltava para o polegar e só depois começava a desbastar a unha do dedo tagarela, ainda mais devagar, deliciando-se com os berros desesperados que só ele conseguia ouvir.

com o passar do tempo, o dano que causava em seu fura-bolo destro era cada vez pior. o suplício, antes quinzenal, passou a ser mais frequente, até tornar-se contínuo. prendia o dedo na porta do automóvel, apagava cigarros em sua extensão, fazia cortes profundos com facas de cozinha - tudo isso com um sorriso no rosto, como se a dor não fosse sua. os psicólogos, satisfeitos, comemoravam: parecia ter abandonado os desejos violentos que tinha em relação a todas as poucas pessoas com quem era obrigado a conviver.

o indicador, farto dos abusos, passou a abandonar os conselhos, as críticas, os comentários. ainda era uma extravagância, um dedo falante, mas passou a se manter calado para não despertar a crueldade de seu proprietário. entretanto, não conseguia deixar de gritar com os castigos aos quais era submetido e apenas teve paz quando foi amputado, alguns meses depois de proferir sua primeira palavra, devido a uma infecção gravíssima.

apesar de satisfeito pelo fim da encheção de saco, o rapaz pressentia problemas pela ausência de sua válvula de escape. felizmente, em pouco tempo descobriu o freecell, atividade que inexplicavelmente lhe traria calma e paz interior até o fim dos seus dias.