sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

adoro vírgula

parecia um desenho, o seu adílio, com o excesso quase caricaturesco de rugas e a impressão contínua de choro iminente que transmitia. suas sobrancelhas estavam quase sempre franzidas, a boca quase sempre entreaverta. os olhos tristes, as pálpebras pesadas. costumeiramente, estava cabisbaixo. vestia-se quase sempre da mesma forma: uma sandália velha de couro, uma calça social escura e uma das dúzias de camisas pólo que possuía - recebia anualmente duas delas, uma no aniversário, outra no natal.

não casou, não teve filhos. veio para brasília na década de 70 por causa de um emprego público, deixando os pais no interior de minas gerais, e não volta para casa desde 1986. os únicos contatos são feitos nas datas comemorativas, com as trocas de presentes via correio e cartões genéricos. eram bem idosos, mas ainda tinham saúde. vão ficar mais uns anos por aqui.

ali na sala de espera do doutor, com uma pasta cheia de exames nas mãos, despertava a piedade de quase todo mundo que passava, com aquela postura de condenado. tomava o costumeiro chá de cadeira fornecido pelos médicos de qualidade, até que ouviu a recepcionista jeitosinha chamar seu nome e, num passo frágil e claudicante, dirigiu-se ao consultório.

dr. renato cumprimentou o senhor, questionou sobre os sintomas, verificou a área afetada, analisou as chapas e os exames, e entendeu bem o que estava ocorrendo ali. infelizmente, não era tão bom no trato pessoal como na teoria médica, e perdeu-se em silêncios e gaguejos por cerca de um minuto, até que conseguiu se recompor. respirou fundo e enunciou:

"seu adílio, é coisa simples, pode ficar tranquilo. vou receitar um anti-inflamatório e um analgésico, nada de mais, o senhor toma até a caixa acabar. e... mais uma coisinha. nessa idade avançada, o senhor tem que acalmar um pouco nas relações com seus... amigos. frequência menor, menos intensidade. nesse ritmo, o corpo não aguenta, e aí pode aparecer alguma coisa pior. pode ser?"

o paciente consentiu, resignado. levantou-se, agradeceu, despediu-se do médico e tomou as ruas, ponderando se valia a pena mesmo abdicar dos seus rapazes. primeiro o pó, agora a sodomia. esses caras só querem saber de cortar a onda alheia.

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