sempre fiz troça com meu irmão pelas constantes reclamações sobre dores de ouvido e aproveito essas linhas para pedir desculpas; a sensação que me acometeu na manhã da última segunda-feira me fez honestamente contemplar a introdução de um objeto pontiagudo qualquer no meu canal auricular. não sabia o que era mais insuportável: o calor que tomava conta de toda a orelha, a pressão que me fez pesquisar sobre a possibilidade de a minha cabeça explodir, ou a impressão de que as entranhas do meu ouvido direito estavam sendo marteladas.
atordoado, abandonei a repartição e liguei para a amiga que me é referência para casos médicos; tinha recomendações para tudo. depois de ouvir sobre meu problema, ela indicou, sem titubear, um tal dr. adolfo, senhor de idade avançada, métodos antigos, às vezes heterodoxos, mas com um ótimo histórico de sucessos e amizade de longa data com sua família. segundo ela, eu poderia ser consultado ainda naquele dia, o que definiu a contenda. solicitei a marcação de um horário, agradeci e fui para casa odiar o universo.
mais tarde, na ante-sala do consultório, me atendeu uma daquelas senhoras que tentam conversar até com a pilha de revistas no centro da sala de espera. geralmente não tenho problema com esse pessoal, desenvolvi habilidade invejável para essas conversas sem propósito algum, mas minha situação naquele momento impedia a articulação de frases de nível médio de complexidade. pelo menos fiquei ali por pouco tempo; não havia mais ninguém no cômodo e o doutor me atendou logo após a minha chegada.
entro no escritório e cumprimento dr. adolfo, que me esperava em pé. era realmente velho, talvez beirava os sessenta, mas transmitia bastante confiança. parecia ter atingido em seu vasto tempo de atividade médica o equilíbrio perfeito entre seriedade e descontração, de forma que a primeira impressão foi a melhor possível. depois de uma breve e frívola conversa sobre a família de minha amiga, solicitou que eu sentasse em uma cadeira especial e, enquanto examinava meu ouvido direito, me questionava sobre alguns hábitos. "usa cotonete?" sempre. "lava após o banho?" também. sempre tive certa obsessão com a higiene nessa área do corpo. coisa de mãe, acho.
"cotonete é terrível", advertiu. "é importante ter um pouco de cera, protege, lubrifica. com o cotonete você tira tudo, ou empurra tudo para o fundo, o que pode causar vários problemas". prosseguiu a explanação, descrevendo uma estrutura presente nos ouvidos de todos nós - um ser, na verdade. algo semelhante a uma pessoa, claro que em dimensões diminutas, que vive no canal auditivo externo. alimenta-se de cera.
nada abalado com minha expressão estupefata depois dessa revelação, prosseguiu o questionário. "e a vida, como anda? problemas? más decisões?" nem consegui formular uma resposta. enquanto pronunciava sílabas desconexas, dr. adolfo me interrompeu, trazendo mais luzes ao assunto. "essa criaturinha no seu ouvido é o que muita gente costuma chamar de 'consciência'. algumas são melhores que as outras, mais razoáveis, embora haja pesquisas que indiquem uma mudança geral de comportamento entre esses apêndices. nada conclusivo, ainda".
esse era meu diagnóstico: pouco cerume. havia ainda uma infecção, mas o problema mais destacado era a ausência de alimento para esse bichinho, que, após chegar ao seu limite, esbofeteava meu aparelho auditivo e não mais me direcionava para as boas decisões. lembrei-me da briga com flávia, da direção ofensiva que vem gerando advertências, dos desrespeitos aos horários na firma. era algo difícil de acreditar, mas tinha seu fundamento: sempre ouvi adjetivos como "ponderado" e "pacífico" nas minhas descrições. era verdade que não estava nos meus melhores dias, ultimamente.
no final da consulta, as recomendações finais. "repouse, evite sair de casa. aqui tem um atestado médico, 15 dias, não deve precisar de mais. te receito algo pra dor também, que muito bem conheço e sei que é horrível. jogue os cotonetes fora; a limpeza deve ser feita apenas com toalha, após o banho. esqueça os conselhos da sua mãe e das professoras do pré-primário". sorriu discretamente, mandou um cumprimento para minha amiga e me despachou.
saí do prédio em busca do meu automóvel, me perguntando o que diabos havia ocorrido ali. procuraria outro médico? esperava mais um pouco? resolvi dar um crédito para o velho e saquei do bolso o mp3 player, que havia deixado de usar, temendo que a moléstia fosse uma reprimenda pelos anos e anos ouvindo música no último volume possível. enquanto greg puciato berrava nos meus ouvidos, não me pareceu prudente abandonar a música alta, que tão bem me fazia, para conservar a audição no futuro. mau julgamento, talvez.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
5 comentários:
oi. ficou bom.
Gostei também!
Mas sempre que te leio me questiono sobre a proporção entre ficção e realidade desses teus relatos em terceira pessoa!
Opssssssssssss... PRIMEIRA pessoa.
Meu cérebro tá no limite do irraciocínio.
alá a ..dri.. na mesma linha de pensamento que eu (irracionando, o que também me é próprio)
te mostrar o que é poesia dude: http://www.youtube.com/watch?v=VOIpB10c_bQ
tocante.
Postar um comentário