sexta-feira, 19 de novembro de 2010

pena que ponto-e-vírgula não dá leite

abri a mesinha com o suposto intuito de melhor apoiar a minha revista de palavras cruzadas, mas o real objetivo era colocar-me em posição favorável para mirar de vez em quando as coxas da moça que estava ao meu lado. um tabu de anos estava se rompendo; nunca havia viajado ao lado de uma mulher merecedora de um conceito acima de "medíocre". dessa vez, não apenas fui premiado com a beleza da companhia, como ainda recebi um bônus: o arrojado vestido da passageira, que terminava uns dois ou três palmos acima do joelho. sempre fui muito ruim com essas medidas subjetivas.

é interessante registrar meu pavor de altura. desprezo as estatísticas; sei muito bem que viajar de avião é mais seguro do que andar por aí de carro, ônibus, charrete ou camelo, mas isso não ajuda a afastar o incômodo ao saber que estou dez quilômetros acima do solo. hoje em dia consigo voar sem maiores vexames (nunca mais apertei o braço de ninguém ou sussurrei súplicas ao deus em quem não acredito), e isso se deve, acima de tudo, às palavras cruzadas. entre os exercícios diretos e os dominox, muitas vezes logro transpor as curtas distâncias dos meus itinerários costumeiros sem aquela deliciosa impressão de que cada minuto dura uns 500 segundos. muito obrigado, coquetel.

dessa vez, no entanto, pouca atenção consegui dedicar aos meus problemas de complexidade média (nesse nível, fecho quase todos; já planejo um upgrade na dificuldade), posto que as pernas da minha colega de fileira atraíam uma atenção inexplicável - por alguns momentos, me senti um tarado. havia ainda um multiplicador para a perversidade da minha contemplação: a moça dormia. era uma viagem de um pouco mais de duas horas, e a moça entregou-se ao sono durante uma metade do percurso. imóvel, corpo levemente arqueado para a esquerda, apoiando-se na parede do avião, os músculos firmes da coxa definidos mesmo em situação de repouso. acho que não cheguei a terminar três páginas.

pois bem, acordou. sol na cara, já que o passageiro da frente não havia fechado a janela. esfrega o rosto um pouco amassado. tenta alongar os membros, tarefa com baixo nível de sucesso devido ao espaço exíguo, e se apóia no encosto de braço ao meu lado, mostrando certa inquietude. olha para fora, para a frente, olha de canto de olho para o meu passatempo, enquanto eu concentrava boa parte das minhas forças para tirar a vista das suas pernas ainda expostas. estávamos uma fileira intermediária (14, se não me engano) num vôo vespertino de uma quinta-feira para belo horizonte - vazio, portanto - e graças à simpática política da companhia aérea de não mais oferecer refeições, mas sim vendê-las, o trânsito de comissárias era mínimo.

diante do preenchimento particularmente complicado de um diagrama, abandonei a publicação por alguns instantes e passei em vistoria toda a aeronave, em busca de algo que pudesse prender a minha atenção. ao virar para a esquerda, intentando perder uns segundos com as nuvens, notei que ela olhava diretamente para mim e, sem pensar, dirigi meus olhos aos dela. esse contato visual direto durou algo em torno de quinze segundos, e quem já se viu em situação semelhante sabe como esse intervalo é algo próximo do infinito. não trocamos palavras, ninguém sorriu para ninguém. em um impulso que hoje apenas posso qualificar como absurdo e inédito, levei minha mão esquerda à sua perna direita.

não gosto nem de pensar no que poderia ter acontecido. sei que, naquele momento, não houve qualquer resistência à minha ação e meus dedos pousaram um pouco acima de seus joelhos por uns dois minutos; já não nos olhávamos mais. um don juan saberia perfeitamente como atuar: iniciaria uma conversa lasciva, solicitaria o número do telefone, talvez tentaria algo no mínusculo banheiro, que mal me comportava em pé. eu, algo longe de um conquistador nato, não pensava em nada - e nem tentava, para falar a verdade. apenas deixei a mão ali por alguns instantes e, em outro rompante, cumpri lentamente o trajeto entre o local do primeiro toque e o encontro das coxas da moça. encontrei um obstáculo diminuto, de algodão, rapidamente transposto. novamente, não houve qualquer tentativa de interrupção.

foram uns quinze minutos. pouquíssimos sons, devidamente abafados por mordidas no lábio inferior. quase rompeu o forro do assento com as unhas. não há como afirmar sem sombra de dúvida esse tipo de coisa, você sabe como é, mas acredito que houve o clímax.

logo depois, ela se virou para a esquerda e entregou-se à paisagem até o pouso. voltei para as cruzadinhas até quando foi possível (não consigo passar pelas aterrisagens com os olhos abertos). não demorou muito para tocarmos o solo. saímos sem trocar qualquer palavra ou mesmo cruzar olhares. cheguei primeiro à esteira de bagagens e fiquei esperando a passagem da minha bolsa; ela, que nada havia despachado, passou direto, cabeça baixa, deixando a impressão de que se tivesse que recuperar sua mala ali, poderia muito bem tê-la deixado rodando e ido embora do mesmo jeito.

lembro-me de ter pensado, enquanto saía em busca de um táxi, que essa seria uma histórica fantástica para contar. não deixa de ser; o foda é que ninguém acredita.

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