terça-feira, 19 de abril de 2011

canta, sabiá

-...pois um dia eu cheguei em casa lá pras oito da noite, depois de jogar bola com o pessoal da rua. eu era ruim de bola, mas amigo de todo mundo, aí me deixavam jogar, e eu tinha metido um gol, talvez o primeiro do ano - era março de 90, se não me engano. foi a maior festa, cheguei em casa feliz pra caralho e entrei assobiando "flores", minha música preferida na época, meu irmão ouvia o "õ blesq blom" o tempo todo e eu adorava. meu pai olha pra mim e eu assobiando, todo sujo, suado, acho que com a camisa rasgada. ele estava puto com alguma coisa, tinha a ver com a poupança da família, já tinha bebido uns goles, ele costumava beber quando nervoso. esboçei um cumprimento e tomei de volta uma saraivada de palavrões e reclamações sobre como eu era um irresponsável, não fazia nada, não ajudava ninguém, ainda chegava em casa todo maltrapilho, não respeitava o trabalho da minha mãe em casa. eu tinha doze anos, porra. não respondi, sabia como meu pai ficava depois de beber. saí assobiando - a mesma música, eu acho. talvez "miséria".

rapaz, ele ficou possesso. nunca tinha visto ele daquele jeito. tirou o cinto e correu atrás de mim - só notei quando não podia fazer mais nada. me agarrou com a mão esquerda e com a direita segurava o cinto pela ponta de couro: o outro lado, a que tinha a fivelona de metal, ele deitou nas minhas costas umas cinco vezes. na última, a hastezinha que se enfia nos buracos entrou no meu lombo e deixou essa beleza de cicatriz ao sair, olha só. não lembro de dor igual na infância, meu pai quase não me batia, só pra dar uns sustinhos de vez em quando. no outro dia ele pediu desculpas, chorou, foi foda; meu pai era um homem bom, foi um pai muito bom. mas te digo uma coisa: fiquei uns vinte anos sem assobiar. haha. voltei tipo ano passado!


ouvi essa história na frente dos mictórios; foi iniciada enquanto ainda retirávamos nossos pênis e terminou bem depois da finalização do trabalho que estávamos ali para realizar. fiz um comentário simpático genérico - algo como "foda, hein?" - enquanto me lembrava das tardes em que estive próximo de emular as tentativas de suicídio de didi mocó na minha estação de trabalho por não aguentar mais ouvi-lo assobiando a mesma música por quatro horas. coisas tipo, sei lá, "no more 'i love you's", "have you ever seen the rain?", "fixação". só pérola.

saí do banheiro um pouco chateado com a incompetência do paizão (se é pra traumatizar, que faça direito), mas com boas idéias para a criação do rebento que planejo nunca ter.

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