magino
que a seção do cérebro responsável pela memória do prezado leitor
(risos) seja como a minha: um amontoado de fragmentos de experiências,
pequenas cenas que não costumam chegar a um minuto, às vezes desprovidas
de algo que justifique o registro eterno. um exemplo: a fala de um
companheiro do time fraldinha de futebol de salão do clube libanês, que
sentado no banco de trás do carro do meu pai, informou a todos os
ocupantes que um outro rapazinho não tinha a menor condição de “me
brigar”. isso ficou comigo pra sempre, e tenho milhões da mesma
natureza. não é de se espantar a regularidade com que esqueço o número
do meu próprio celular.
outro
exemplo, esse mais significativo, também ligado ao ludopédio: estava
jogando futebol no recreio - quinta série isso, se não me engano -
quando de repente sinto um cheiro que nunca havia sentido na vida, e
nunca voltei a sentir. estávamos sofrendo um contra-ataque, três contra
três, e o odor me surpreendeu de forma tão violenta que abandonei as
minhas obrigações defensivas e fiquei parado no meio do campo,
desnorteado, enquanto os adversários aproveitavam a recém-obtida
superioridade numérica para fazer o quinto gol de uma vitória por seis a
três. sofri justas represálias e prosseguimos o embate, embora
estivesse completamente incapacitado para ajudar meu time a partir
daquele momento. queria acabar logo com aquilo, ir pra casa, tentar
entender o que havia ocorrido.
peço
desculpas pela minha falta de habilidade com o vernáculo, razão pela
qual não consigo nem me aproximar de uma descrição competente do cheiro
que senti naquele dia. a referência olfativa mais próxima que conheço é a
borracha queimada, mas o odor que senti era mais forte, mais denso,
como se algo mais palpável do que simples partículas estivessem
adentrando as minhas narinas. essa conclusão me confundia ainda mais -
no campinho parcamente gramado e repleto de terra seca do colégio,
cercado por quadras e pelo terrão onde defendia seus jogos o clube de
várzea do bairro, não havia qualquer sinal de algo queimando.
também
me perturbou o fato de que apenas eu parecia ter sentido o cheiro. os
outros já conheciam? era mais forte pra mim? moleque medroso e de
imaginação fértil, provavelmente passei a tarde deitado na minha cama,
maquinando explicações para o ocorrido. poderia ter acontecido algum
fenômeno que interferiu na atmosfera. eu poderia estar doente. talvez
fosse um aviso das forças supremas do universo, tentando me informar que
em vinte e quatro horas eu estaria morto, ou perderia alguém, ou
conheceria o amor da minha vida. tudo isso deve ter passado pela minha
cabeça enquanto eu me perguntava se deveria conversar com meus pais ou
folhear a enciclopédia delta universal da família. deve ter sido um dia
longo.
não
morri, felizmente. desse dia, fica apenas a memória do odor
desconhecido e da minha expressão de estupefação nos últimos minutos do
recreio. terminei a quinta série, minha última nesse colégio, e pude
presenciar outra cena que ainda levo em minha mente, por motivos óbvios:
uma das minhas primeiras paixonites (escreveria crushes,
mas vai que o aldo rebelo tropeça nesse sítio), sentada na última
cadeira da fileira do canto, apalpando os seios por cerca de cinco
segundos durante a aula de espanhol, com os olhos fechados. esse dia foi
massa.
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Um comentário:
"magino que a seção do cérebro responsável pela memória DA PREZADA LEITORA".
sou eu quem leio isso daqui e exijo respeito.
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