ela
gostava de dormir acompanhada, dos vários contatos em diferentes graus
que a divisão de uma cama obriga, mas respeitava minha aversão ao toque
durante o sono e se colocava em uma extremidade da cama, enquanto eu me
protegia no outro canto. trocávamos boa-noites, beijávamo-nos e cada um
virava para o seu lado, ainda assim mantendo distância glútea de cerca
de um metro; era uma boa cama, não comprei à toa. neste momento, quando
tentávamos cair no sono, ficava claro porque tínhamos tantos problemas e
porque ainda não havíamos nos separado ainda.
dormíamos
de lado; não consigo dormir de qualquer outro jeito. colocava a cabeça
no travesseiro e, quinze segundos depois, quando o silêncio tomava o
quarto, começava a ouvir o barulho de sempre, o barulho de algo fluindo,
em intervalos de cerca de um segundo: flush, flush, flush. trocava a
posição, tentando fazer com que aquilo cessasse, mas sabia que era um
esforço inútil; desde que podia me lembrar, tinha aqueles sons como
companheiros na hora do repouso. ia ficando cada vez mais nervoso,
frustrado por não conseguir me acalmar para descansar, preocupado com o
que poderia ser um óbvio sinal de uma anomalia (nunca aconteceu nada,
mas vá dizer isso para quem está controlando a coisa toda), pensando se
isso acontecia com todas as pessoas, ou ao menos com a maioria delas. a
situação me arruinava de tal forma que desistia de dormir. quando estava
sozinho ia arrumar algo para fazer, mas na companhia dela tinha a
responsabilidade de não atrapalhar o seu sono e por isso me esforçava
para ficar imóvel e quieto, remoendo a minha maldição, esperando a
piedade da existência. durava pouco; não aguentava mais do que uns
trinta segundos parado e espezinhado com o flush flush flush flush
flush.
pois
bem, disso só soube meses depois: ela tinha seu sono comprometido quase
que diariamente por barulhos semelhantes. entretanto, o que em mim
gerava insatisfação e revolta nela desencadeava um processo de ansiedade
- a prova de que o sangue prosseguia viajando pelo seu corpo fazia com
que ela se sentisse viva e impossibilitava seu relaxamento; era um
momento como qualquer outro, que devia ser aproveitado. perder tempo
inconsciente na cama era o mesmo que pedir para morrer por algumas horas
e para ela isso era completamente inaceitável. tentava ficar imóvel e
quieta para preservar o meu sono, mas também fracassava em pouco tempo.
segundo me contou, geralmente era possuída por um leve tremor antes de
desistir.
não
raro, virávamo-nos quase que no mesmo instante; primeiro um giro de
noventa graus, seguido de um breve momento olhando para o teto e um suspiro, depois um movimento semelhante que nos colocava um de
frente para o outro, ela com toda aquela energia represada precisando de
fluir, eu com a raiva de quem, por um motivo desconhecido e alheio à
minha ação, não consegue fazer o que todas as outras pessoas fazem com
toda a tranquilidade. poucos instantes depois, estávamos engajados em
uma trepada agressiva e explosiva, que nos exauria de tal
maneira que depois dormiríamos em cima de um formigueiro, lambuzados de
mel.
por
um ano e sete meses, esse foi o meu expediente pré-sono sempre que
minha ex-namorada decidia dormir em minha companhia (coisa de duas vezes
por semana, acredito). terminamos por uma dúzia de causas, uma delas
essa felicidade estúpida e irritante, essa animação para fazer tudo e
conhecer pessoas e descobrir sensações e experimentar a vida que
contrastava de forma violenta com a minha opinião de que quase tudo já
foi feito, quase todo mundo é igualmente insosso e quase nada realmente
vale o esforço. hoje não sinto falta dela, mas tenho saudade do sexo, o
melhor que já tive e a única garantia de sono que conheci nos meus quase
trinta anos. à noite coloco música e fico mastigando a ira, demoro pra
dormir. durmo mal e pouco, acordo cedo, lido com gente irritante, vivo
mal humorado, pensando em voltar pra casa e descansar, só que não. segue
o baile.
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