segunda-feira, 18 de junho de 2012

gente que eu conheço iii

elizabeth tem como sua diversão preferida - sua única diversão, na verdade - puxar as cutículas dos dedos da mão. entretanto, uma curva acentuada de aprendizado e uma pré-disposição genética fizeram com que ela seja particularmente proficiente neste hábito que divide com tantas pessoas: já conseguiu levar uma cutícula no indicador direito dezenove centímetros para o sul, deixando um traço de sangue e carne viva que levou algumas semanas para cicatrizar. doeu, sem dúvida, o que satisfez a moça: além do aspecto, a elizabeth também agrada a sensação, o ardor cada vez mais forte gerado pelo movimento, iniciando com algo tão tolerável como uma mordida leve e culminando em leves contrações dos músculos do seu braço. um prazer confuso, mas arrebatador.

infelizmente, elizabeth só apreciava a dor no momento da esfola; o constante incômodo das feridas não-fechadas nas mãos, sangrando devido a movimentos mínimos, era a desagradável consequência dos momentos mais satisfatórios da sua vida. imagine sentir pontadas e puxões a cada vez que desenvolve as mais simples atividades na vida de uma garota de dezesseis anos: escrever, utilizar um teclado, segurar talheres. imagine a transformação de um banho em um suplício. para ela, tudo bem.

isso faz com que a menina se retraia cada vez mais. apesar das mãos evidentemente retalhadas, ninguém sabe do seu hábito: nem o pai, distante graças às obrigações laborais, nem a mãe, distante graças ao ódio secreto pelo que acredita ser a causa do fracasso no alcance das suas metas, nem os amigos, que não existem. do restante da família consegue fugir com os rótulos de tímida, esquisita, afastada: na verdade, ninguém faz muita questão da sua presença. é uma aluna medíocre e uma adolescente sem brilho ou particularidades, e por não se destacar pela inteligência ou pelo desinteresse, pela beleza ou feiúra, por esse ou aquele estilo, consegue flanar desapercebida pelos corredores, salas de aula e anos escolares. para ela, tudo bem também.

aproxima-se na vida de elizabeth aquele momento capital em que se começa a decidir por um caminho. trilhar a estrada comum, de faculdade-estágio-trainee-emprego? mandar a tradição às favas e optar por algo menos convencional? procurar marido? antes de se perguntar se deseja lutar para fazer o que gosta, a garota seria confrontada por um questionamento mais complicado: do que eu gosto? 

“puxar as cutículas dos dedos da mão” seria a resposta correta aqui. utilizo o subjuntivo porque o auto-inquérito nunca foi feito; elizabeth não pensa no futuro, na carreira, na vida sentimental. as pessoas tendem a não acreditar, mas elizabeth não pensa em nada. hoje, aos dezesseis anos e meio, invisível para a sociedade, desmotivada para todo o resto, ela senta em seu quarto e olha para os dedos, alguns em carne viva, alguns em estágios mais avançados de cicatrização, e espera calmamente pelo momento em que se desenvolverão novas tiras sobressalentes de pele a serem arrancadas com cuidado, com o esmero e a habilidade de uma profissional, atingindo distâncias que provavelmente representam recordes mundiais.

preocupa-me um pouco o futuro de elizabeth. para ela, tudo bem.

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