elizabeth
tem como sua diversão preferida - sua única diversão, na verdade -
puxar as cutículas dos dedos da mão. entretanto, uma curva acentuada de
aprendizado e uma pré-disposição genética fizeram com que ela seja
particularmente proficiente neste hábito que divide com tantas pessoas:
já conseguiu levar uma cutícula no indicador direito dezenove
centímetros para o sul, deixando um traço de sangue e carne viva que
levou algumas semanas para cicatrizar. doeu, sem dúvida, o que satisfez a
moça: além do aspecto, a elizabeth também agrada a sensação, o ardor
cada vez mais forte gerado pelo movimento, iniciando com algo tão
tolerável como uma mordida leve e culminando em leves contrações dos
músculos do seu braço. um prazer confuso, mas arrebatador.
infelizmente,
elizabeth só apreciava a dor no momento da esfola; o constante incômodo
das feridas não-fechadas nas mãos, sangrando devido a movimentos
mínimos, era a desagradável consequência dos momentos mais satisfatórios
da sua vida. imagine sentir pontadas e puxões a cada vez que desenvolve
as mais simples atividades na vida de uma garota de dezesseis anos:
escrever, utilizar um teclado, segurar talheres. imagine a transformação
de um banho em um suplício. para ela, tudo bem.
isso
faz com que a menina se retraia cada vez mais. apesar das mãos
evidentemente retalhadas, ninguém sabe do seu hábito: nem o pai,
distante graças às obrigações laborais, nem a mãe, distante graças ao
ódio secreto pelo que acredita ser a causa do fracasso no alcance das
suas metas, nem os amigos, que não existem. do restante da família
consegue fugir com os rótulos de tímida, esquisita, afastada: na
verdade, ninguém faz muita questão da sua presença. é uma aluna medíocre
e uma adolescente sem brilho ou particularidades, e por não se destacar
pela inteligência ou pelo desinteresse, pela beleza ou feiúra, por esse
ou aquele estilo, consegue flanar desapercebida pelos corredores, salas
de aula e anos escolares. para ela, tudo bem também.
aproxima-se
na vida de elizabeth aquele momento capital em que se começa a decidir
por um caminho. trilhar a estrada comum, de
faculdade-estágio-trainee-emprego? mandar a tradição às favas e optar
por algo menos convencional? procurar marido? antes de se perguntar se
deseja lutar para fazer o que gosta, a garota seria confrontada por um
questionamento mais complicado: do que eu gosto?
“puxar
as cutículas dos dedos da mão” seria a resposta correta aqui. utilizo o
subjuntivo porque o auto-inquérito nunca foi feito; elizabeth não pensa
no futuro, na carreira, na vida sentimental. as pessoas tendem a não
acreditar, mas elizabeth não pensa em nada. hoje, aos dezesseis anos e
meio, invisível para a sociedade, desmotivada para todo o resto, ela
senta em seu quarto e olha para os dedos, alguns em carne viva, alguns
em estágios mais avançados de cicatrização, e espera calmamente pelo
momento em que se desenvolverão novas tiras sobressalentes de pele a
serem arrancadas com cuidado, com o esmero e a habilidade de uma
profissional, atingindo distâncias que provavelmente representam
recordes mundiais.
preocupa-me um pouco o futuro de elizabeth. para ela, tudo bem.
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