luciana
conversa com suas plantas - e não como você conversa como seu sobrinho
de nove meses ou com o cachorro da família. luciana expõe teorias,
descreve argumentos, tece provocações. encerra sua fala e se cala,
dedicando-se então a escutar e absorver o contraponto. ela se orgulha de
ser uma boa ouvinte; apenas interrompe quando é exposta a algo muito
absurdo, situação em que quase sempre se altera: franze a testa,
gesticula em demasia, altera o tom de voz. no entanto, o exagero geralmente passa
rápido e ela volta ao debate civilizado com as habitantes da pequena
varanda de seu apartamento.
suas
interlocutoras são depositadas em um vaso comum de trinta centímetros
de largura por um metro e quarenta de comprimento. são muito bem
tratadas, mas ao contrário do que as pessoas costumam imaginar, as
conversas mais instigantes não são travadas quando luciana ia levar às
plantas - neste momento, dois pés de manjericão, uma pimenteira e quatro
tulipas - os insumos necessários para a sua sobrevivência; esse era um
momento de cumprimentos, troças, small talk. luciana gostava de
conversar à noite, depois de chegar do trabalho. nunca falava de
assuntos de firma, contudo.
isso
quando estava em casa, claro. alguém poderia ler este relato e pensar
que se trata de uma louca disfuncional, o que está distante da
realidade. luciana encontra-se relativamente realizada com sua carreira,
tem uma vida sentimental e sexual adequada para uma mulher de trinta
desinteressada em casamento e provida de atributos físicos que poderiam
receber nota entre seis e sete em uma escala de zero a dez, e foi
abençoada com a curiosidade e a agilidade sináptica que a fazem ser
reconhecida como alguém intelectualmente interessante. luciana saía de
casa, tinha hobbies, amigos, compromissos. mesmo assim, sempre reserva
uma parcela de sua semana para as suas plantas.
luciana
se chateia com a rotatividade de suas companheiras, que eventualmente
pereciam apesar dos seus bons cuidados, e o falecimento de algumas é
sentido de forma mais aguda. por outro lado, aprecia todo o processo de
renovação - a escolha da espécie, a compra da semente, o plantio, a
aplicação para que a planta cresça forte etc. geralmente não se engaja
em conversas mais robustas com as plantas jovens, muito sonhadoras, de
postura juvenil demais. espera seu desenvolvimento pleno e se diverte
com a antecipação do que virá desta vez: um debatedor pela esquerda ou
direita, um entusiasta de alguma das artes, um interessado pelas
relações humanas ou pela situação do planeta ou pela comunicação em
massa. tantas são as opções.
algumas
tem gostos mais simples, o que desaponta luciana. ela, pessoa justa e
compreensiva, acredita que dá para estas as mesmas chances de
sobrevivência, mas que elas morrem mais cedo mesmo assim por solidão ou
tristeza, por nunca conseguirem entrar devidamente nas conversas e nelas
se manterem no mesmo nível que todos os outros. não é verdade: para
estas, a poda não é tão bem feita, a água vem em menor quantidade, há
menos preocupação em geral. é melhor para luciana ignorar este
tratamento diferenciado, pois prefere ver-se como igual perante as
plantas, desconsiderando sua postura divina no que tange ao futuro
delas. são amigas, simplesmente. nunca mataria nenhuma por motivo tão
banal.
há
uns dois meses luciana começou a se preocupar com a qualidade das
discussões, que pareciam estar se tornando mais rasas. pensou nas
possíveis causas e tomou duas atitudes: mudou o composto químico que
utilizava para fortalecer seu pequeno jardim - antes um produto de
conglomerado multinacional, agora uma opção mais orgânica de origem
local - e cortou a tv a cabo do apartamento, que utilizava muito pouco
de qualquer jeito; afinal, é difícil ver televisão, trabalhar, fazer
algum exercício físico, ler e manter uma vida social, com pessoas ou
não. acredita estar vendo alguns progressos, mas também suspeita que
haja um componente de geração, e que seja difícil acompanhar as mudanças
do ambiente e manter a mente flexível com o passar dos anos. faz
sentido.
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