quinta-feira, 14 de junho de 2012

gente que eu conheço ii

luciana conversa com suas plantas - e não como você conversa como seu sobrinho de nove meses ou com o cachorro da família. luciana expõe teorias, descreve argumentos, tece provocações. encerra sua fala e se cala, dedicando-se então a escutar e absorver o contraponto. ela se orgulha de ser uma boa ouvinte; apenas interrompe quando é exposta a algo muito absurdo, situação em que quase sempre se altera: franze a testa, gesticula em demasia, altera o tom de voz. no entanto, o exagero geralmente passa rápido e ela volta ao debate civilizado com as habitantes da pequena varanda de seu apartamento.

suas interlocutoras são depositadas em um vaso comum de trinta centímetros de largura por um metro e quarenta de comprimento. são muito bem tratadas, mas ao contrário do que as pessoas costumam imaginar, as conversas mais instigantes não são travadas quando luciana ia levar às plantas - neste momento, dois pés de manjericão, uma pimenteira e quatro tulipas - os insumos necessários para a sua sobrevivência; esse era um momento de cumprimentos, troças, small talk. luciana gostava de conversar à noite, depois de chegar do trabalho. nunca falava de assuntos de firma, contudo.

isso quando estava em casa, claro. alguém poderia ler este relato e pensar que se trata de uma louca disfuncional, o que está distante da realidade. luciana encontra-se relativamente realizada com sua carreira, tem uma vida sentimental e sexual adequada para uma mulher de trinta desinteressada em casamento e provida de atributos físicos que poderiam receber nota entre seis e sete em uma escala de zero a dez, e foi abençoada com a curiosidade e a agilidade sináptica que a fazem ser reconhecida como alguém intelectualmente interessante. luciana saía de casa, tinha hobbies, amigos, compromissos. mesmo assim, sempre reserva uma parcela de sua semana para as suas plantas.

luciana se chateia com a rotatividade de suas companheiras, que eventualmente pereciam apesar dos seus bons cuidados, e o falecimento de algumas é sentido de forma mais aguda. por outro lado, aprecia todo o processo de renovação - a escolha da espécie, a compra da semente, o plantio, a aplicação para que a planta cresça forte etc. geralmente não se engaja em conversas mais robustas com as plantas jovens, muito sonhadoras, de postura juvenil demais. espera seu desenvolvimento pleno e se diverte com a antecipação do que virá desta vez: um debatedor pela esquerda ou direita, um entusiasta de alguma das artes, um interessado pelas relações humanas ou pela situação do planeta ou pela comunicação em massa. tantas são as opções.

algumas tem gostos mais simples, o que desaponta luciana. ela, pessoa justa e compreensiva, acredita que dá para estas as mesmas chances de sobrevivência, mas que elas morrem mais cedo mesmo assim por solidão ou tristeza, por nunca conseguirem entrar devidamente nas conversas e nelas se manterem no mesmo nível que todos os outros. não é verdade: para estas, a poda não é tão bem feita, a água vem em menor quantidade, há menos preocupação em geral. é melhor para luciana ignorar este tratamento diferenciado, pois prefere ver-se como igual perante as plantas, desconsiderando sua postura divina no que tange ao futuro delas. são amigas, simplesmente. nunca mataria nenhuma por motivo tão banal.

há uns dois meses luciana começou a se preocupar com a qualidade das discussões, que pareciam estar se tornando mais rasas. pensou nas possíveis causas e tomou duas atitudes: mudou o composto químico que utilizava para fortalecer seu pequeno jardim - antes um produto de conglomerado multinacional, agora uma opção mais orgânica de origem local - e cortou a tv a cabo do apartamento, que utilizava muito pouco de qualquer jeito; afinal, é difícil ver televisão, trabalhar, fazer algum exercício físico, ler e manter uma vida social, com pessoas ou não. acredita estar vendo alguns progressos, mas também suspeita que haja um componente de geração, e que seja difícil acompanhar as mudanças do ambiente e manter a mente flexível com o passar dos anos. faz sentido.

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